sexta-feira, 30 de maio de 2014

os selfies

Miranda chegou em casa cedo, antes das 19 horas.
Deitou-se no sofá da sala e sentiu a urgência de pegar seu celular. Agora que estava em casa, tinha a maravilhosa cobertura de internet sem-fio, poderia enfim mergulhar no mundo de prestígio virtual. A primeira mensagem na sua caixa de entrada era de uma colega que a alertava sobre a entrega de um trabalho de biologia; a segunda, um pedido desesperado de prestígio na mesma rede social; havia uma terceira e talvez uma quarta, mas Miranda não se deu ao trabalho, tinha outras prioridades.

Iniciando o aplicativo da câmera, ponderou sobre a pose e a expressão facial adequada, escolheu a câmera frontal para melhor previsão do resultado e estendeu as mãos com o celular à sua frente. Isso mesmo, a adolescente agora está a tirar uma selfie: a expressão irrevogável da supremacia do eu público sobre o eu particular. 

Tal fenômeno não poderia existir fora da esfera virtual; pois nela, o grau de importância é demonstrado somente através da popularidade de cada um, causando alguns fenômenos curiosos. O mais interessante deles ocorre no facebook: quase todos partilham da solidariedade coletiva do prestígio público, ou seja, por mais que você nunca tenha conversado com certa pessoa; esta irá lhe adicionar e - nunca lhe dirigindo a palavra diretamente - curtir suas fotos, postagens e comentários. O sentimento geral é de que todos precisamos de curtidas para a manutenção de nossa popularidade virtual (e consequentemente de nossa auto-estima), acarretando na empatia que mencionei antes. Afinal, hoje é ela quem posta uma selfie, amanhã pode ser eu.

Algumas pessoas inovam na selfie para alcançar maior prestígio: abraçam-se a seus animais de estimação, fazem caretas engraçadas, colocam os pais, tios e avôs na foto, etc. Miranda, não. Ela sabia que sua abordagem de maior sucesso consistia num filtro retrô qualquer, cabeça inclinada para o lado, um rosto meio inexpressivo e um excerto de uma música de sucesso na legenda. 

Foi assim mesmo que concluiu a tarefa. Sentiu a leve apreensão segundos antes da primeira notificação chegar, depois o alívio, três de seus amigos curtiam. Meia hora depois, boa parte do seu círculo já tinha contribuído para com ela, fizeram a boa-ação do dia. Os mais próximos comentaram "linda!" ou "Minha gatinha!", não se sabe se o ato fora de real admiração ou de puro interesse em sub-prestígio.

Nas próximas horas, a garota esteve em seu quarto ouvindo música. Estendeu-se na cama e refletiu sobre os acontecimentos do dia, as tarefas escolares permearam sua mente, mas Miranda não tinha ânimo algum para começá-las. Não só atividades ordinárias da escola lhe afligiam agora, uma barulhenta discussão começava no quarto ao lado, eram seus pais trazendo à tona alguns conflitos familiares. Ela aumentaria o volume dos auto-falantes se pudesse, não queria ouvir mais nada, mas já estava cansada e com sono. Decidiu então desligar as luzes e dormir ali mesmo, como estava, ao som dos blues noturnos daquela rádio genérica.

E dormiu bem, pois sua selfie tinha mais de 50 curtidas.

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